O Tempo como Lugar
Na obra de Manuela Mendes da Silva, o tempo e o espaço tornam-se princípios regentes que, através da cor e da forma, revelam uma sensibilidade única e profunda, desafiando os limites da racionalidade.
Digo do tempo enquanto categoria aristotélica do ser; digo-o na sua essência demandando a identidade e a unidade internas. E digo espaço, subtraindo-me à perspectiva de Aristóteles, porque redutora, para perseguir a extensão cartesiana, o ínsito malebra-chiano, a movimentação leibniziana até chegar à intuição kantiana. Assim me aproximo da pintura de Manuela Mendes da Silva que tem no tempo e no espaço os princípios regentes da sensibilidade do ser. Sem pospor as outras sete categorias, omito-as, porque implícitas nas que, aqui e agora, considero matriciais.
Minerva tutela-as e acopla-lhes a moral, a ética e a estética. Do conluio resulta a obra de arte que claramente contraria o postulado por George Steiner na sua opus magnum Gramáticas da Criação. É que em Manuela Mendes da Silva não há exaustão, não há “cansaço fundamental”, nem urgência do começo, posto que ao seu processo criativo não subjaza o novo nem o novíssimo, outrossim um continuum oscilante de quedas e asceses geradoras daquele luminoso indizível que a sua poética encerra.
Há, pois, tempo e espaço que negam o apocalipse do fim da arte e da cultura ocidentais.
Esse tempo, paradoxalmente duplo e uno, convoca uma inteligência visual que ultrapassa a racionalidade. Os acrílicos sobre tela, particularmente os de grandes dimensões(150X200; 150X150; 100X100), partem da suavidade cromática e instalam-se numa policromia intensa. Seguindo os ditames de Kandinsky, Manuela Mendes da Silva rejeita a figuração, concentrando-se no relacionamento entre as cores, formas e linhas. O diálogo entre cores primárias e secundárias, a justaposição de camadas insinuadoras da cinesia pulsátil e da profundidade proporcionam uma linguagem expressiva das emoções íntimas evocadora do movimento Pós-Abstracção Pictórica que sucedeu ao expressionismo abstracto. As cores – já o escrevi noutro local – brotam impulsivamente na livre trajectória da emoção com absoluto predomínio do sentimento; há nelas virtudes poéticas que ostentam a realidade do mundo interior. Primeiro os azuis, sonhadores e monótonos, a convocar a utopia; depois os vermelhos a instaurarem a conflitualidade que o enérgico optimismo dos amarelos contraria; escorrem negros silenciosos e sibilinos insinuadores de ocultações e desvendamentos. Há um dégradé emocional que tece loas à força, à vitalidade, à energia. O contraditório a Steiner erige-se no azul-céu, no vermelho-sangue, no amarelo-sol ofuscadores de qualquer negritude. O sonho reina no seio de uma vitalidade perscrutadora do real. Desconstrução e construção menos freudiana e mais junguiana na expressão do inconsciente. Evoco Blavatsky: “o homem faz de si a imagem dos seus sonhos”.
Muda o tempo, muda o espaço mas o paradoxo da unidade mantém-se. Desloco-me para oriente sem deixar o ocidente. Penso em Orientalismo de Edward W. Said e sinto que os trabalhos da Série Oriente levantam questões de construção de identidade, pós-colonialismo, multiculturalismo e globalização. O Outro, a que alude Ryszard Kapuscinski, é aqui legitimado por uma arte que privilegia o desenho à pena com tinta da china multicromática sobre papel artesanal.
Pinceladas, só aparentemente acidentais, são janela aberta para o abstracionismo caracterizador da poética de Manuela Mendes da Silva, e o garante da unidade e da sociedade global.
A circunstância espacial modaliza a arte. Camboja, Malásia, Redang motivam traços finos prenhes de sentimento que procuram a forma atrás abandonada. Não há restrições, antes um hibridismo técnico-formal que anuncia o pós-modernismo. A pluralidade vestigia-se nos materiais utilizados de maneiras novas e inovadoras.
A preocupação com a união de pontos conduz às linhas que se erigem rectas a anunciar a dureza; aqui e ali cedem à suavidade e sinuosidade de leves curvas; espiritualidade e elevação são sugeridas pelas verticais que cruzam com as horizontais em clima de quietude; por vezes inclinam-se em instabilidade e movimento e ondulam em suavidade rítmica ou em vertiginosa espiral.
Eis a natureza em todo o seu esplendor. Troncos possantes e raízes poderosíssimas, em incessantes movimentos, contagiam e estimulam novas formas expressivas intensas e selváticas. Cores quentes, fortes e densas criam violentos contrastes.
Azul-mar; verde-selva; castanho-terra. As linhas prendem as pinceladas cromáticas numa sinfonia irrequieta e festiva.
Os intertextos da Série Oriente agilizam um processo hipertextual em que a natureza abre uma janela de preocupações na senda do Manifesto Eco-Modernista; este recusa a visão do ser humano enquanto destruidor da natureza, sugerida por Paul Crut-zen, para apelar a um olhar positivo para a era antropocênica. Também por isto a arte de Manuela Mendes da Silva contradita o pessimismo de Steiner. Tudo tão diferente e tudo tão igual. Tempo e espaço, moral e ética têm o imenso poder de gerar a serenidade de uma arte que nega a superficialidade e o facilitismo pois “as águas correm mansamente onde o leito é mais profundo” (Shakespeare).
Em tempos de “objectos ansiosos”, cortados os laços com o real, a pintora intransigente recomeça a incessante busca da perfeição soltando sentimentos e emoções que livremente expande.
“A pintura tem uma vida própria” (Pollock). Tempos e Luzes é, sobretudo, uma peculiar forma de estar na vida.
ISABEL PONCE LEÃO
PORTO, AGOSTO 2021
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